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Foi ano passado,
quando primeiro percebi o carro. No comercial de televisão onde o jovem adulto
bem vestido, gel no cabelo, camisa engomada, sai do escritório para entrar em
seu carrão rumo a um fim de semana de aventuras. Com direito a dirigir entre um
estouro de boiada e levantar cortina de lama em câmera lenta para, segunda-feira,
exibir orgulhosamente pela cidade seu possante com as marcas da estrada de
terra. “O conforto da cidade com a liberdade off road” dizia a grave voz narrando a lúdica propaganda.
Minha colega, uma
diminuta artrópode hemofágica que aluga um espaço na parte de trás de minha
orelha, baixou o jornal que segurava e me fitou por cima dos óculos sem nada
dizer, enquanto eu ficava impressionado pela sedutora propaganda.
–
Que foi, pulga? – perguntei.
–
Você cai nessa?
– Claro que não. –
respondi constrangido ao perceber que caí direitinho. A pulga sabe que esse
tipo de propaganda não é para pessoas como eu.
A
segunda vez que vi o gigante automotivo foi muito mais emocionante. Pudera, ele
não estava atrás da frígida tela de um televisor. Estava cortando toda a
humildade de minha bicicletinha para fora da pista. O largo utilitário
esportivo ocupava toda a faixa direita da avenida. Não havia espaço para mais
nada. Me vi obrigado a sair do asfalto e esperar uma chance de voltar a pedalar
em segurança. Logo à frente, um semáforo se avermelha e segura meu algoz de 2300
cilindradas no lugar, dando-me a chance de emparelhar e mandar um singelo
abraço à mãe do motorista. Antes da troca educada de elogios, porém, bati com a
língua nos dentes ao perceber que o exímio piloto era meu supervisor. Estava lá
se dirigindo à fábrica assim como eu. Aquele para assistir, esse para
trabalhar.
Coisa
maravilhosa é o instinto de sobrevivência do ser humano, visto que, naquele
momento, recolhi-me à insignificância socioeconômica do alto da bicicletinha e,
com um aceno para o superior hierárquico que arrancava o veículo na abertura do
semáforo, pedalei para duas faixas de distância cortando outros carros e
arriscando ser atropelado. Ao chegar à fábrica, o satisfeito condutor me
intercepta no corredor.
– E aí, ciclista?
– Opa, chefe, carrão,
hem?
– É o SUV do ano!
Quatro por quatro e tudo.
– Esportivo
utilitário, né? E pra onde vai com
tanta potência automotiva?
– Aqui, pro serviço, e pra casa de praia nos fins de semana.
Na
hora, pensei “Seu exibido arrogante, você mora a quinze minutos do serviço e
sua casa de praia fica na cidade vizinha. São vinte quilômetros de pista
perfeitamente asfaltada e sei que você mal aparece por lá duas vezes por ano.” Mas,
como é incrível esse tal instinto, o que realmente saiu pela minha boca foi:
– Legal! Com licença,
vou pra minha estação.
Pula
a pulga de trás de meu ouvido e pousa na mesa onde fica o computador.
– Eu sei o que você
está pensando. Um carro daquele e o cara nem precisa de tudo isso.
– É, pulga. Mas é
assim mesmo. Status quo. Ele é supervisor,
tem de manter as aparências. Fora que esses carrões estão na moda. – rebati só
para não concordar com o animal.
– Agora você falou
algo certo, dá uma olhada nisso.
O
pontinho preto saltitou pelo teclado do computador e abriu uma página
eletrônica com um gráfico.
(Fonte:
http://carros.ig.com.br/especiais/suvs+devem+dominar+vendas+acima+de+10+no+pais+em+2015/8444.html
)
– Esses carros estão
vendendo cada vez mais, mesmo num cenário de queda dos automotivos. –
argumentou a pulga com ar professoral.
– Sim, e qual o
problema? – retruquei.
– O problema é a
sustentabilidade!
– Sustentabilidade? –
perguntei incrédulo – Então, você está me dizendo que a venda de SUVs, de
alguma forma, afeta a reciclagem do lixo?
– Sua visão de
sustentabilidade é muito limitada, amigo. Pensa comigo: os carros estão cada
vez maiores e, consequentemente, mais pesados. Mais peso causa maior queima de
combustível. E não são apenas esses SUVs, o tamanho dos carros populares aumentou
quase vinte centímetros nos últimos dez anos. Parece pouco, eu sei, mas
multiplique esses vinte centímetros pela quantidade de carros nas pistas.
Imagine a falta que faz esse espaço na hora de estacionar. Você tem notado os
congestionamentos cada vez maiores. O espaço nas ruas não está ficando maior, e
os carros estão fazendo o inverso do ideal, que seria adaptar o tamanho dos
carros para uma área urbana saturada de veículos. Vias públicas são recursos
limitados e gerenciar esses recursos também faz parte da sustentabilidade.
– Eu não tinha
pensado por esse lado.
– Claro que não. Você
lembra dos Smart Cars? Em 2005,
quando o tratado de Quioto entrou em vigor propondo, entre outras medidas
sustentáveis, a eficiência energética e a reforma no setor de transportes,
esses carros supertecnológicos, econômicos e minúsculos foram apresentados como
a solução derradeira para a mobilidade urbana. Chegou a ter certa atenção da
mídia, mas logo foi engolido pela poderosa indústria automobilística. Pior,
numa mostra cruel de sua força, manobrou a tendência do setor para que do
fracasso dos carros sustentáveis emergissem os potentes utilitários esportivos.
Estes são a antítese dos carros sustentáveis, apesar das propagandas apelarem
com frases como “o mais econômico da categoria”, “linha eco” e “total flex”.
– Mas não podemos
fazer nada a respeito. Estamos cada vez mais off road sem sair da cidade.
– Você talvez não.
Mas nós, pulgas, temos o dever de espalhar, de orelha em orelha, essa
coceirinha que deixa as pessoas inquietas...
Para saber mais:
http://g1.globo.com/carros/noticia/2015/04/6-novos-suvs-em-1-mes-veja-tudo-deles-e-como-os-rivais-se-mexeram.html
(notar no fim da matéria as medidas dos carros, chegando a ser quase 20% maior
em comprimento e largura dos carros populares)
(Victor Pedroso de Macedo,
Ciências Contábeis)
Excelente!!!! Parabéns!!!
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